Fim de semana em casa. Acompanhar de perto
parte do crescimento da filha caçula. Ajudar a
montar a enorme árvore de Natal. Aumentar o número
de tatuagens com motivos religiosos. Degustar biscoitos
sem glúten, nada de álcool e fritura. Malhação.
Saber de cor e salteado os diálogos dos desenhos
da porquinha Peppa e do Frozen. Aos 30 anos, Felipe vive
momentos que nunca teve chance por conta da vida de jogador
de futebol. De goleiro titular do Flamengo à peça
descartável, a vida dele mudou. Por ter feito sete
jogos pelo Brasileirão, não poderia se transferir
para outro time da Série A quando foi afastado
do elenco principal. Ele baqueou, se questionou, pensou
em desistir. Seguiu adiante. Sem relutar, ele deixaria
os afazeres domésticos e o tempo livre de lado
para estar sob as traves. Mas foi com o apoio da família
que Felipe voltou a sorrir. E ri até mesmo do email
enviado pelo Rubro-Negro sugerindo que pedisse demissão,
ou que abrisse mão de 50% do que o clube lhe deve
em caso de acerto com outro time.
- No primeiro momento, tive sentimento de
raiva, impotência. A gota d’água da
tristeza foi ver os e-mails das propostas. Eu pedir demissão?
No início, você acha até engraçado.
Você morre e não vê tudo, né?!
Quando acha que já viu tudo, vem uma nova. O clube
me passou duas propostas de rescisão. A outra era:
se eu for para outro time, o débito que o clube
tem comigo cai 50%. São propostas que não
tem condição de aceitar. Não precisaria
passar por isso. Nem quero dizer que fiz muito pelo Flamengo.
Fiz minha obrigação. Me dediquei, sempre
fui Flamengo desde criança, foi um sonho ter jogado
aqui, mas nunca esperava passar por essa dificuldade –
desabafou Felipe.
São dois os momentos que envolvem
Felipe em 2014. Quando Vanderlei Luxemburgo chegou ao
clube, o goleiro perdeu a vaga de titular e passou a não
ser a mais relacionado para o jogo; depois, o departamento
de futebol – representado pelo ex-diretor Felipe
Ximenes e Fred Luz – não conseguiu uma solução
para a situação.
Felipe acumula oito meses de direitos de
imagem em atraso, o que ultrapassa um pouco a casa de
R$ 1 milhão. Como o contrato vai até 31
de dezembro de 2015, ainda restam os salários até
o encerramento do vínculo.
- Se o clube não está satisfeito
com meu trabalho, me manda embora e arque com as coisas
que todo trabalhador normal tem direito. Não pode
chegar e pedir para ir embora. Como disse: (a negociação)
está a passos lentos e não sabemos onde
vai parar.
Depois de quatro meses em silêncio,
Felipe concedeu entrevista ao GloboEsporte.com e à
TV Globo. Abriu o coração. E, diante de
uma enorme árvore de Natal da Peppa - que levou
quatro horas para ser montada -, ele brincou:
- Bastante complicado meu pedido, mas quem
sabe Papai Noel vem aqui e realiza meu desejo (risos).
Pelo Flamengo, Felipe disputou 188 jogos
e sofreu 202 gols. Conquistou dois Cariocas e uma Copa
do Brasil.
Confira os principais tópicos da
entrevista:
O que aconteceu, o que foi falado
até agora?
Felipe: "Sei o que foi exposto pela
diretoria de que eu não fazia mais planos para
2015, isso que eu vi. Mas, para mim, não foi comentado
nada. Iniciamos algumas conversas de rescisão contratual,
mas chega até ser engraçado a que ponto
o clube chegou de formular algumas propostas como a que
sugeria que eu pedisse para ir embora. Na hora, não
entendi muito bem, mas era realmente aquilo. Se o clube
não está satisfeito com meu trabalho, me
manda embora e arque com as coisas que todo trabalhador
normal tem direito. Não pode chegar e pedir para
eu ir embora. Como disse: (a negociação)
está a passos lentos e não sabemos onde
vai parar. O clube me passou duas propostas de rescisão.
A outra era: se eu for para outro time, o débito
que o clube tem comigo cai 50%. São propostas que
não tem condição de aceitar. Não
precisaria passar por isso. Nem quero dizer que fiz muito
pelo Flamengo. Fiz minha obrigação. Me dediquei,
sempre fui Flamengo desde criança, foi um sonho
ter jogado aqui, mas nunca esperava passar por essa dificuldade".
Reação ao momento
complicado
"Fico chateado, pois, querendo ou não,
tenho uma história no clube. Fiz quase 200 jogos,
três títulos (dois Cariocas e uma Copa do
Brasil). Não sou mais nenhum garoto. Não
cheguei ontem ao Flamengo. Em quatro anos, fiz o meu melhor.
Queria que tivessem um pouco mais de consideração
e respeito também. Não estou pedindo nada
demais. Só que sentem e façam uma coisa
correta para os dois lados. Tenho mais um ano de contrato,
não vou pedir para ir embora. Tenho contrato até
31 de dezembro de 2015. Eles foram me buscar onde eu estava
jogando. Em 2012, renovaram meu contrato por mais quatro
anos. Não caí de paraquedas. Quero que o
clube reconheça isso. Não tive uma conversa
olho no olho com ninguém, dizendo “você
não vai ficar”. Fico chateado por isso, não
pelo fato de não estar jogando, ou de primeiro
goleiro ter ido para quarto, quinto. Acontece no futebol.
No contrato não tem que você tem que ser
o primeiro ou o quinto. No primeiro momento, tive sentimento
de raiva, impotência. Gota d’água da
tristeza foi ver os e-mails das propostas. Eu pedir demissão?
Início acha até engraçado. Você
morre e não vê tudo, né?! Quando acha
que já viu tudo, vem uma nova".
Afastamento (um dos motivos seria
uma suposta comemoração do goleiro quando
Vanderlei Luxemburgo foi demitido em 2012)
"Não tem sentido, o próprio
Vanderlei sabe tudo que aconteceu. Ele é macaco
velho, sabe dos bastidores, da história toda. Falaram
que fiz festa com outros atletas para comemorar. Tem cara
que estava no elenco e continua jogando da mesma forma.
Falam muito da relação com Vanderlei, mas
sou grato por ele ter me trazido. Fico me perguntando
porque disso tudo, até chegar a esse ponto. Estou
há quatro meses sem falar, só escuto que
Felipe está fora dos planos, Felipe isso, aquilo.
Se não estão satisfeitos, se não
vão poder arcar com os vencimentos.... Não
sou obrigado a ficar no Flamengo, nem o Flamengo é
obrigado a ficar comigo. Mas eu tenho que pedir para ir
embora?! Eles que querem que eu saia. Fica uma coisa vaga,
estranha, não sei se é só em relação
à parte técnica"
Dinheiro em atraso
"Estou há oito meses sem receber
direitos de imagem. Foi dito que o Flamengo está
a cinco. Quero saber porque essa diferença. O que
fiz de tão grave para ter uma situação
dessa?! Tentei ser o mais honesto possível em todo
tempo. No futebol, um dia você está bem,
outro mal. Espero não ter que esperar até
o fim de 2015 para que seja resolvido. Passaram que o
clube estava com dificuldades, mas que todos iriam receber.
Sou grato ao Flamengo por tudo, poderiam ter mais respeito.
Sentar e falar: "Felipe, você não está
vivendo um bom momento, achamos que você deve seguir
sua vida".
Nova rotina
"Não costumava passar o fim
de semana em casa, com a família, minha filha.
Mas também ficava estressado de ficar tanto em
casa. Por outro lado, pude passar aniversário com
ela, fazer coisas que não tive com outros filhos,
ver o crescimento, acompanhei coisas que não tinha
acompanhado dos outros. O lado bom da parte ruim foi esse.
Mas foi um baque. Depois, junta os cacos, pega apoio na
família. Tenho pais em Salvador, mas meus sogros
aqui no Rio dão força. Cheguei ao ponto
de não saber mais o que fazer."
Dúvida sobre a própria
capacidade
"Fiquei várias vezes em dúvida.
Quando você está num momento ruim, as pessoas
tentam fazer esquecer tudo o que você fez, têm
memória curta, eles lembram o que querem lembrar.
Será que não presto? Você para para
pensar. Fui eleito o melhor goleiro no Bragantino, fui
para o Corinthians, ganhei títulos. Vim para o
Flamengo e fui campeão também. Torcedor
age com a emoção, e não razão.
Como foi com Hernane. Tenho muitos amigos e parentes flamenguistas.
Pessoal queria matar ele em 2012, odiava, ódio
de torcedor. Em 2013, Hernane fez gol de tudo que é
jeito, de costas a bola batia nele e entrava. Os mesmos
que xingavam queriam ele na Seleção. Futebol
é momento: hoje quem presta amanhã é
um nada. Quem é um nada hoje amanhã é
o cara. Se eles acham que hoje não presto...Confio
em mim, tudo que ganhei não foi à toa. Sei
que vivi momento complicado, mas tudo passa".
Futuro
"Difícil pensar no futuro sem
resolver a situação do presente, não
tem como. Queria saber como seria o ano de 2015, mas não
consigo projetar nada, meu 2014 ainda não acabou,
não sei o que será resolvido, as coisas
que foram conversadas até agora aconteceram em
passo muito lento, e pelo andar da carruagem...Meu sonho
era fazer história, ser um ídolo do Flamengo.
Infelizmente, parece que não vai ser assim. E preciso
saber se matriculo os filhos na escola, se vou para outro
lugar. Não estou pedindo nada demais".
Paulo Victor
"Ele buscou, não foi por acaso
que chegou a titular: trabalhou. Sempre falei que Flamengo
era bem servido de goleiros. Paulo Victor está
há 10 anos no clube, tem todos os méritos".
Relação com torcedor
"Não tem como discutir com
torcedor. Futebol, política e religião não
dá para discutir. Com torcedor, no momento da euforia
você é o melhor, na hora da raiva é
o pior, principalmente o goleiro. Se defende um pênalti
no domingo tem que estar na Seleção; na
quarta-feira, leva um gol duvidoso e tem que estar fora
do clube. Com o passar do tempo tem que se acostumar.
Só tenho que agradecer tudo o que fizeram por mim".
Filhos e família
"Minha mulher Katherine, meus filhos,
são minha vida e amores: são quatro filhos:
Ian, Iago, Lara e Maria Eduarda. Os meninos não
entendem e perguntam: "Pai, por que você não
está jogando?". Eu digo que vou jogar e mudo
de assunto. Amigos de escola perguntam se não vou
jogar, se vou sair do Flamengo. Digo que tudo passa".
Dieta fit
"Quando parei de jogar, no primeiro
mês fiquei cabisbaixo. Você larga tudo, não
quer saber de nada. Pensei: "isso é ruim para
mim". Comecei a me cuidar muito mais, fazer dieta
em casa, minha mulher pegou no pé (risos). Estou
bem melhor do que tempos atrás. Sem cervejinha,
refrigerante, gordura, fritura. Só biscoito sem
glúten, sem lactose. Negócio de fit, né?!
(risos). Me sinto bem, nunca tive percentual de gordura
tão bom. Cheguei aos 30 me achando na melhor forma".
Contrato de risco, Fla e Corinthians
"Cheguei ao Flamengo com contrato de
risco, por empréstimo de um ano. Tinha que mostrar
que não era tudo aquilo (risos). Fui comprado pelo
Flamengo. É um sonho para qualquer atleta jogar
nos dois maiores clubes do País, e além
disso ganhar troféus. Você não será
lembrado apenas como aquele bom goleiro. É preciso
títulos. Ganhei cariocas e Copa do Brasil. Em oito
anos, quatro de Corinthians e quatro de Flamengo, foi
só pressão. Gosto disso, de torcedor, de
multidão. Quero jogar".
Pedido para Papai Noel
"Bastante complicado meu pedido, mas
quem sabe Papai Noel vem aqui e realiza meu desejo (risos)".
Posição do clube
sobre felipe
Até ser demitido na semana passada,
o então diretor executivo do Flamengo Felipe Ximenes,
juntamente com Fred Luz, era um dos responsáveis
por resolver a situação de Felipe: "Foi
uma decisão do treinador, ele havia feito as sete
partidas e não poderia se transferir. Como o jogador
não abre mão de suas coisas, não
houve uma solução. Estávamos buscando
resolver", afirmou Ximenes.