Era para ser um jogo qualquer. No Aluízio
Ferreira fazia sol e as cores que se via em campo faziam
menção a um grande clube carioca, o Flamengo.
Até então nada demais, a não ser
o fato de que os rubro-negros em disputa fazem parte de
uma tribo, localizada em um distrito a mais de 300km de
Porto Velho e com pouco mais de 500 integrantes. Trata-se
dos Kaxarari. Independentes, eles conquistaram, em 1970,
o direito à saúde, educação
e posse de suas terras - garantidas por lei. Atualmente,
eles têm garantido também o espaço
no futebol rondoniense com o uniforme vermelho e preto,
do time do coração e que se mistura à
tribo há tanto tempo que nem eles sabem ao certo
como mensurar.
Para chegar à Porto Velho eles enfrentaram
uma verdadeira saga. Aqui, durante a última semana,
eles disputaram mais uma final do Campeonato Interdistrital,
que está na 24ª edição. E voltaram
bicampeões. Mas para chegar até o título,
eles tiveram que enfrentar, várias vezes por semana,
dependendo da disponibilidade do elenco, mais de 30km
para treinar. O campo, localizado no distrito de Extrema
(a 300km de Porto Velho), é frequentado desde 2009
pelo grupo, ano em que começaram a competir - e
já foram campeões.
Sem saber ao certo há quanto tempo
o amor pelo esporte surgiu na aldeia, o atual técnico,
Anderson Kaxarari, conta que manter essa tradição,
aliando cultura ao futebol, não é tão
simples. Dos grandes desafios que eles precisam enfrentar,
a distância e o deslocamento até a capital
rondoniense é um deles.
- O nosso amor pelo futebol surgiu como
o amor pelo Flamengo. Nós não sabemos quando
nem como, mas levamos adiante. O nosso povo gosta muito
de esporte. A gente participa também de competição
de vôlei e atletismo, mas futebol é a nossa
paixão. Como não temos campo para treinar,
precisamos usar o do distrito de Extrema, que fica distante
uns 30km da nossa aldeia. De verdade? Nós gostaríamos
de ter um gramado pra fazer um jogo na comunidade indígena.
Temos até o espaço, mas não temos
estrutura para fazer os jogos.
Devidamente uniformizados, eles fazem questão
de que as camisas, os calções e as meias
sejam oficiais. Mas essa exigência não custou
barato. O líder Zezinho Kaxarari conta que pra
fazer tudo de maneira organizada, foi necessário
ir até Rio Branco, capital acreana, aonde fizeram
as compras. A arrecadação do dinheiro necessário
para isso foi feita dentro da própria aldeia, já
que patrocínio é algo desconhecido por lá.
- Para os uniformes, que compramos em Rio
Branco, tivemos que fazer uma vaquinha com os jogadores.
Eles trabalham aqui na aldeia mesmo, uns como professores,
outros na área da saúde, então todo
mundo tem salário e resolveu ajudar. A gente não
se importa em ajudar, todo mundo quer competir, de um
jeito ou de outro.
Por fim, cumprindo a função
de líder, ex-jogador, treinador e palpiteiro, o
mais falante Kaxarari faz questão de relembrar,
em meio a entrevista ao GloboEsporte.com, sobre o que
o Flamengo representa aos indígenas e complementa
relembrando da época áurea do Rubro-Negro.
- Nos jogos usamos as cores do Flamengo.
Elas nos representam e não nego, sempre gostei
muito do time. Na década de 1980 foi quando eu
vi os jogos mais bonitos, mas com Zico e Cláudio
Adão em campo não tinha como ser diferente,
eles são ídolos e vão continuar sendo
pra sempre. Hoje, infelizmente, vejo que o interesse pelo
futebol é mais econômico e que virou um mercado,
mas isso não acontece com a gente. Nós jogamos
por amor e jogamos entre amigos, já que acreditamos
na força dos laços.