Grande reforço do Flamengo para a
temporada 2014/2015, o argentino Walter Herrmann tem uma
dessas trajetórias no esporte que fazem a gente
duvidar que o cara tenha forças para continuar
atuando. Nascido em Venado Tuerto em 1979, começou
jogando pelo time da cidade e chamou a atenção
de todos. Não era normal ver um ala de 2,06m com
chute de fora, habilidade para jogar dentro do garrafão
e com um potencial físico assustador.
Seu começo de carreira foi sensacional.
Eleito o calouro do ano em 1998 pelo Venado Tuerto, em
2000 foi contratado pelo Atenas, de Córdoba, onde
se tornou campeão nacional e MVP das finais da
Liga Argentina em 2002. Adquirido pelo espanhol Fuenlabrada
no mesmo ano, anotou 22,6 pontos e 9,6 rebotes em sua
temporada de estreia (2002/2003) e deixou a todos de boca
aberta na Europa. O também espanhol Málaga
não teve dúvida, abriu o cofre e fisgou
o argentino para ser a principal estrela da equipe.
carroMas sua vida mudaria no dia 18 de julho
de 2003. Em um acidente de carro (foto à esquerda
do La Voz del Interior) na cidade de Córdoba (Argentina),
Herrmann perderia as três mulheres mais importantes
de sua vida de uma só vez: a irmã Barbara,
a mãe Cristina e a namorada Yanina. Treinando com
a seleção em Buenos Aires, ele recebeu a
triste notícia, viajou para acompanhar o funeral
e ficou longe do basquete por alguns meses.
Retornou ao Málaga, fez uma boa temporada
(média de 10 pontos) e enfim estreou na seleção
argentina adulta. Foi no Sul-Americano de 2004 em Campos,
Rio de Janeiro. No torneio, ele teve as médias
de 22,5 pontos e 5,3 rebotes, levando a Argentina ao título
contra o Brasil. Na decisão, Herrmann despejou
incríveis 37 pontos e 11 rebotes naquele 18 de
julho de 2004, exatamente um ano depois da morte da namorada,
irmã e mãe. Quando ligou para dar a notícia
da conquista, foi avisado que seu pai falecera devido
a um ataque cardíaco fulminante. Aos 25 anos, ele
estava sozinho. Seu mundo literalmente caiu.
No período de 12 meses, o ala perderia
a família completa mas, sabe-se lá como,
decidiu continuar atuando. Foi às Olimpíadas
de Atenas, conquistou o ouro olímpico com os argentinos
diante dos italianos, mas demorou a engrenar no seu retorno
a Málaga. Teve duas chances na NBA, jogou no Detroit
e no Charlotte, mas algo estava fora do lugar. Sua filha
nasceu em 2009 (o nome Barbara é uma homenagem
à irmã falecida), ele ainda tentou um retorno
à Espanha, no Baskonia, mas ao final da temporada
2009/2010 decidiu, aos 30 anos, se aposentar do basquete.
À época, disse que precisava
se conhecer melhor, resolver pendências pessoais.
Só que o amor ao basquete falou mais alto. Três
anos depois, em 2013, voltou a treinar no primeiro clube,
o Venado Tuerto. Disse que era apenas por amor ao jogo
e que estava ali para se divertir. No mês seguinte
recebeu uma proposta do Atenas. Era uma volta às
origens. Herrmann aceitou. Fez 22,4 pontos, 7,1 rebotes
e foi eleito o MVP da Liga Argentina.
Então Julio Lamas, técnico
da seleção, não teve dúvida.
Selecionou o ala para o Mundial da Espanha e, dez anos
depois do ouro olímpico, viu o cabeludo ser uma
peça fundamental na equipe com 9 pontos e 4,7 rebotes.
Recém-contratado pelo Flamengo, ele vive sua primeira
experiência profissional no Brasil e terá
algumas missões pelo clube rubro-negro. As principais
são logo no começo de sua trajetória:
o Mundial de Clubes contra o Maccabi Tel-Aviv e os três
amistosos na NBA em outubro.
Nada que assuste quem já passou por
tanta coisa. Conversei com ele na Gávea, no sábado
a respeito de sua carreira.
BALA NA CESTA: Como está sendo o
começo de sua vida no Flamengo? Sua adaptação
à cidade, ao clube, à equipe…
WALTER HERRMANN: Olha, a verdade é que me sinto
muito cômodo com tudo o que está acontecendo
por aqui. Dirigentes, comissão técnica e
companheiros fazem de tudo para que eu tenha o máximo
de tranquilidade na cidade, no time, com tudo. Obviamente
que no começo tem as questões de mudança
de habitação e isso não é
fácil. Estava morando em Copacabana, mas hoje (sábado)
vim para meu apartamento no Leblon e estou muito feliz.
Todos me receberam muito bem.
BNC: Seu primeiro compromisso com o Flamengo
será justamente o Mundial contra o Maccabi Tel-Aviv
na próxima semana. Você jogou muito tempo
na Europa. O que esperar do torneio e como fazer para
ganhar do time israelense?
HERRMANN: É uma oportunidade única. Todos
aqui temos que ter isso na cabeça. É uma
oportunidade única e não devemos desperdiçá-la.
Cada um que está aqui pode marcar seu nome eternamente
na história do Flamengo. E isso é muita
coisa. Vai ser complicado ganhar, mas vamos tentar trabalhar
bem essa semana para chegar na melhor forma possível
até sexta-feira, dia do primeiro jogo. Ter atuado
na Europa ajuda muito a saber como os europeus gostam
de jogar. É um estilo que se defende muito, a cadência
é muito mais travada, mas isso todos que estão
aqui já sabem. Marquinhos, Marcelinho, o Nicolas
Laprovittola e toda comissão técnica conhecem
bem o estilo europeu de atuar. Vamos ter que fazer um
plano de jogo muito inteligente, correr apenas se puder
e tentar jogar da maneira mais pensada possível.
Só assim será possível ganhar de
um rival tão duro.
BNC: Imagino que falar desse assunto não
seja muito fácil para você, mas gostaria
de saber como você conseguiu tirar forças
para continuar e depois voltar a jogar basquete após
tantos problemas familiares pelos quais você passou.
HERRMANN: A verdade é que eu aprendi a não
olhar para o passado. Nem no ouro olímpico de 2004
eu penso muito. Justamente para não ficar lembrando
das coisas. Há algumas marcas, há algumas
cicatrizes, mas treino minha cabeça para seguir
vivendo, seguir conquistando as coisas, seguir plantando
coisas boas. Não penso muito na trajetória,
no passado. Nunca fico com o que passou, mas sim com o
que está pela frente. É melhor assim, é
melhor para mim assim. E o que se apresenta agora é
o Mundial, depois os amistosos da NBA, NBB e Liga das
Américas. Meus focos estão nisso agora.
BNC: Depois do Mundial, o Flamengo irá
fazer três amistosos na NBA, onde você jogou
por Detroit e Charlotte. Você falou em “experiência
única” para descrever os duelos contra o
Maccabi. O mesmo se passará jogando nos Estados
Unidos contra Phoenix, Orlando e Memphis, certo?
HERRMANN: Sim, é por aí também. Vai
ser algo lindo, uma experiência muito interessante
e que sabemos não ocorrer todos os dias. É
algo inédito, pelo que fiquei sabendo. Então
temos que aproveitar da melhor maneira possível.
Os jogadores da NBA estão preparados para jogar
outro tipo de basquete. É tudo muito rápido,
as defesas são um pouco mais abertas por causa
da questão dos três segundos da zona (não
permitido) e há muito mais espaço. Vai ser
algo lindo. Sinceramente é impressionante. Depois
de jogar uma final do Mundial, ir à NBA é
incrível. Tomara que aproveitemos essa oportunidade
da melhor maneira possível.
BNC: Uma de suas melhores partidas foi justamente
contra o Brasil, em 2004, naquele Sul-Americano de Campos
(foto à esquerda). Você fez 37 pontos na
final e a Argentina foi campeã. Agora, no Mundial,
novamente os dois países se enfrentaram e você
estava lá. Como é enfrentar o Brasil, por
toda a rivalidade que cerca esse duelo?
HERRMANN: Ah, tem uma rivalidade maior, isso é
óbvio. Mas, para mim, tento fazer como faço
contra qualquer equipe. Tento dar o meu melhor para a
camisa que defendo, seja a de um clube, seja a da seleção
do meu país. Só que entre Brasil e Argentina
há uma questão grande de rivalidade esportiva
de um modo geral, negar isso seria mentira. São
partidas como outras, mas quase sempre que joguei contra
o Brasil eu tive sorte de ir bem. Sendo bem sincero: não
fico pensando no Brasil alucinadamente quando vou enfrentá-lo,
mas sim que do outro lado há 12 jogadores e que
preciso fazer o melhor possível.
BNC: Você falou do Laprovittola, o
outro argentino do elenco. Ele tem sido seu guia turístico
aqui no Rio de Janeiro, é isso?
HERRMANN: (Risos) Quase isso. Ele também se mudou
recentemente, agora moraremos perto, aqui no Leblon. Ele
está me ajudando muito, me ensinando algumas palavras
e daqui a pouco vou entendendo tudo se as pessoas falarem
devagar.
BNC: Pra fechar: você ouviu a torcida
do Flamengo cantando uma música com a mesma melodia
que a Argentina canta para sua seleção naquele
“Decime que se siente”? O que achou?
HERRMANN: Olha, ouvi. No domingo passado, contra o Corinthians,
fui ao Maracanã e lá escutei (foto à
direita). É estranho, viu. Por tudo o que a canção
argentina diz, tudo o que se passa. Agora tenho é
que aprender essa nova letra.